Consultor Jurídico, 4 de novembro de 2014
Por Fernando Facury Scaff
João Guimarães Rosa foi um dos maiores escritores brasileiros, e em seu livro de estreia, uma coletânea de contos chamado Sagarana, consta o intitulado “A hora e a vez de Augusto Matraga”, um clássico da literatura nacional, ambientado na zona rural de Minas Gerais. Nele é narrada a história de um valentão, cujo nome dá título à obra, que além de puxar briga com todos e de se meter com as mulheres alheias, não se preocupava com a sua própria esposa, nem com sua filha ou com suas propriedades. Ocorreu de sua sorte mudar: mulher e filha fogem da fazenda com seus capangas e se amasiam junto com seu pior inimigo, que determina ser-lhe aplicada uma surra e sua morte. Matraga é surrado mas escapa da morte se jogando de um penhasco. Sai vivo, mas com várias sequelas deformantes e é amparado por um casal de negros velhos, Quitéria e Serapião, que dele cuidam por vários anos. Torna-se pessoa boa, trabalhadora, e depois de vários anos encontra-se com um bando de jagunços liderado por Joãozinho Bem-Bem, que iria matar uma pessoa, executando uma vingança pessoal. Nesse instante estava presente Augusto Matraga, que “despertou para sua hora e vez”: impede o assassinato em nome da justiça, mata vários capangas com verdadeiro furor, e desafia Joãozinho Bem-Bem para um duelo, em que ambos morrem, sendo então identificado por seus antigos conhecidos.
Busco Guimarães Rosa para alertar que devemos despertar efetivamente para “a hora e a vez” da reforma tributária e financeira brasileira. Passadas as eleições e identificados os novos dirigentes do país pelos próximos quatro anos, é necessário colocar em marcha esta reforma para já. É hora de deixar de lado os malefícios que o sistema atual vem causando e, tal qual Matraga, “despertar”, e, em nome da justiça, modificar um monte de coisas para tornar a economia deste país mais funcional.
Não se trata de simplesmente baixar a carga tributária. Se o intuito fosse esse, a reforma seria muito simples: bastaria propor a redução das alíquotas, sem mexer no sistema. A despeito de ser adequado, seria insuficiente. É preciso mais.
Também não se trata de desonerar setores econômicos específicos do país, como vem sendo feito de forma pontual: redução de IPI para produtos da “linha branca” (geladeiras, fogões entre outros) ou para automóveis. Isso é uma espécie de política econômica anticíclica e não tem a ver com o tema da reforma tributária. Pode até dinamizar a economia por um tempo, mas não funcionará de maneira permanente.
É irreal e disfuncional continuar com a guerra fiscal entre os estados, pois se trata de um jogo de perde-perde a longo prazo, que já se encontra em seus estertores.
Da mesma forma é insuficiente criar mecanismos perenes de redução da carga fiscal para determinadas atividades que tenham baixo faturamento, como o sistema fiscal Simples, que foi recentemente ampliado. A despeito de trazer redução dos tributos, o sistema Simples cria mais uma distorção fiscal, pois, tal como hoje estruturado, acaba por acarretar uma espécie de Síndrome de Peter Pan nas empresas, que não poderão jamais crescer, pois se isso ocorrer voltarão à vala comum do sistema tributário, com um custo fiscal enorme. Logo, para quê crescer nesse caso?
A reforma de que trato neste artigo visa (re)organizar o sistema fiscal brasileiro para permitir que possamos voltar a crescer de forma sustentada por vários anos. Esboçarei adiante algumas ideias, que certamente se revelam muito mais como um roteiro do que parece adequado alterar no sistema tributário e financeiro brasileiro, do que um projeto perfeito e acabado.
Unificar a receita não quer dizer colocar os estados e municípios de pires nas mãos. Parcela do que vier a ser arrecadado deve pertencer aos estados e municípios no exato valor que tiver sido apurado em seus territórios, sem um caráter redistributivo. Outra parcela, que corresponde ao IPI que deixaria de ser um tributo autonomamente cobrado, deveria pertencer à União, junto com o Pis e o Cofins.
Uma parte dos que tiver sido arrecadado deve ter uma função redistributiva, pelo sistema de Fundos de Equalização, incluindo os royalties da mineração e do petróleo, e transferências voluntárias, evitando situações anômalas que se encontram em alguns estados, que renunciam a parte que podem cobrar de ICMS, mas litigam para receber mais royalties do petróleo, o que se configura algo esquizofrênico.
A apreensão das quotas-parte por parte da União é coisa do passado. Deve ser criado um mecanismo eficaz de averiguação desse rateio, se possível com a supervisão do Senado, órgão federativo paritário composto por todos os estados da federação.
Isso permitiria integrar os sistemas de fiscalização estaduais e federal. As secretarias estaduais de fazenda permaneceriam fiscalizando a arrecadação desse novo tributo.
A cobrança desse IVA no destino acabaria com a guerra fiscal. E retirar a carga tributária sobre o faturamento das empresas também é algo positivo, que seria alcançado com o fim do Pis e da Cofins como hoje existem.
Claro que é necessário dimensionar as alíquotas, a fim de evitar que a carga fiscal seja amplamente majorada. O ideal é que fosse paulatinamente reduzida — algo como meio ponto percentual a cada ano. Indicar o intuito de reduzir a carga fiscal de forma planejada é tão ou mais importante que efetivamente reduzi-la de chofre, impactando direta e imediatamente as despesas públicas.
Da mesma forma, a regra da menor tributação em razão da essencialidade dos produtos deve passar a ser obedecida, reduzindo fortemente a carga fiscal sobre a energia elétrica, a telefonia e os combustíveis.
No mesmo sentido, ampliaria a base de cálculo sobre a incidência de cada qual dessas alíquotas. Hoje quem ganha acima de R$ 4,5 mil encontra-se na faixa de 27,5% o que é excessivo. Trata-se de uma alíquota que deve incidir sobre rendimentos muito superiores a esse montante. A mesma crítica vale para as demais faixas, incluindo a da isenção, atualmente por volta dos R$ 1,7 mil.
O imposto único não permitiria distinguir as situações da vida quotidiana que devem ser diferentemente tributadas, igualando o que não deve ser tratado de forma igual. Imaginem que um super-rico pagaria proporcionalmente o mesmo que um trabalhador que ganhe o salário mínimo, quando a tributação deveria ser progressivamente diferenciada. Entendo que quem ganha mais deve pagar progressivamente mais, e não apenas proporcionalmente mais.
O grande mérito desse sistema é sua simplicidade, porém a renúncia a primados de justiça fiscal não me parece ser a fórmula mais adequada. A simplificação deve ser perseguida a todo custo, mantido o ideal de uma tributação mais justa.
Quanto ao imposto sobre grandes fortunas verifica-se que seus benefícios podem ser alcançados por outros tributos do nosso sistema, como os que incidem sobre o patrimônio (IPVA, IPTU, ITR), ou sobre a transmissão do patrimônio (ITBI ou ITCMD). Outros tributos poderiam permitir a obtenção deste mesmo resultado, como, por exemplo, calibrar a alíquota do ICMS (ou do IVA) para obras de arte ou bens suntuários. A dificuldade de se estabelecer o que é uma fortuna, e mais ainda, o que é uma grande fortuna, e a instalação de todo um aparato fiscalizatório, acabariam por tornar este tributo muito pouco arrecadatório e disfuncional, sem falar da dupla incidência que acabaria por gerar enorme judicialização sobre esta incidência. Onde foi criado a arrecadação costuma ser irrisória.
Nesse sentido, é necessário mais uma vez, e sempre, tratar desigualmente os desiguais. O sistema de Fundos de Equalização ajudariam nessa tarefa, mas não são suficientes. Os estados que mais colaboram com a balança de exportações brasileira devem receber tratamento diferenciado, em especial quando as riquezas exportadas se configuram recursos naturais não renováveis, como as riquezas minerais, que são, por definição, esgotáveis.
Observe-se que não se trata apenas de um esboço de pauta para uma reforma tributária, mas também de uma reforma financeira, pois estes dois âmbitos devem se equalizar, e cumprir uma função de planejamento econômico do Brasil para a presente e a futuras gerações.
Este esboço de reforma não é apenas de responsabilidade da União, “da Dilma”, mas de todos os deputados federais (você ainda se lembra em quem votou?), senadores, governadores e deputados estaduais eleitos em outubro, bem como dos senadores que foram eleitos em 2010 (como anda sua memória?) e dos prefeitos e vereadores (nem vou perguntar pela lembrança de seu voto) eleitos em 2012. E não só deles, mas de todos que formam “os fatores reais de poder desta Nação”, para usar uma expressão de Ferdinand Lassalle.
Espero que a fanfarronice de Augusto Matraga, mencionado no início do texto, nos alerte para a hora e a vez destas reformas, não permitindo que morramos abraçados no maniqueísmo entre o bem e o mal, que fica muito bem na literatura, mas que não se reflete de igual forma na realidade, que é muito mais complexa do que isso.
Lanço estas ideias ao vento, esperando que sejam sementes a dar fruto.
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