08 de julho de 2025
Por Fernando Facury Scaff
Esta é a terceira e última parte do texto em que analiso esse tema. Na primeira parte, foram analisadas as decisões de política governamental acerca de quais condutas devem ser criminalizadas e a incorporação dessas decisões políticas ao direito positivo de cada país, mencionando as normas brasileiras. Na segunda parte, foi abordada a interpretação dessas normas pelo Supremo Tribunal Federal e o elastecimento jurisprudencial dos tipos penais tributários.
Nesta parte final, será analisado o papel do método de pagamento dos tributos sobre o consumo, denominado split payment, que está já foi aprovado no Brasil pela EC 132 e regulado pela Lei Complementar 214/24, e será implementado paulatinamente.
Que apreciem esta série em três episódios. Não garanto que haverá nova temporada.
Exposto o panorama penal-tributário deve-se analisar um ponto específico introduzido no ordenamento jurídico brasileiro por meio da Emenda Constitucional 132/23, e legislado pela Lei Complementar 214/24, que alteraram substancialmente o sistema de tributação do consumo, que é o do método de pagamento por meio do split payment.
Split payment é o nome dado ao recolhimento de tributos no momento da liquidação financeira, pelo qual uma parcela da fatura paga será imediatamente apartada para quitação dos tributos sobre o consumo incidentes sobre aquela operação (uma espécie de IVA dual, com tributos gêmeos denominados de CBS e de IBS), o que também vale para o Imposto Seletivo, quando incidir (artigo 433, LC 214/24). Esse método de pagamento ingressou de forma sutil na EC 132/23 (artigo 156-A, §5º, II, “b”), mas tornou-se o coração do novo sistema tributário do consumo por meio da Lei Complementar 214/24 (artigos 31 a 35).
Supondo uma alíquota de 30%, a empresa A vende mercadorias para a empresa B por R$ 100, acrescido de 30% de IBS+CBS. No ato de quitação do boleto bancário será imediatamente apartado o montante de R$ 30 para pagamento dos tributos incidentes. Com isso, a empresa vendedora A receberá o valor de R$ 100, embora a empresa compradora B tenha pagado R$ 130, pois o imposto já terá sido arrecadado pelo Fisco no montante de R$ 30,00. Existem algumas variantes, como o split payment inteligente, o simplificado e o manual, mas, em síntese, a operação está desenhada da forma exposta.
Como todas as operações comerciais já se encontram diretamente disponibilizadas aos fiscos por meio do Sped Fiscal — Sistema Público de Escritura Fiscal, haverá a possibilidade teórica de, ao serem articulados e melhor desenvolvidos os sistemas, implementar a não-cumulatividade em todas as operações.
Considerando as consequências do split payment no que se refere aos aspectos penais-tributários, pode-se imaginar que, ocorrendo o pagamento do tributo de forma instantânea e concomitante ao pagamento da fatura, isto é, concomitante à liquidação financeira da operação, a tributação deixará de ser autodeclaratória, reduzindo as possibilidades de o mau contribuinte deixar de pagar os tributos devidos. Será necessário manter a escrita fiscal, apurando créditos e débitos para com o Fisco, mas o tributo já terá sido recolhido antecipadamente.
O split payment reintroduz o lamentável e odioso solve et repete, que significa: pague antes e busque ressarcimento em caso de erro na cobrança. O que aponta para o aumento da litigiosidade dos contribuintes contra o Fisco, e redução das demandas do Fisco contra o contribuinte.
Ao que tudo indica, a depender de como o sistema vier a ser implantado, ainda haverá a possibilidade de o contribuinte realizar pequenas irregularidades, como estabelecer que a mercadoria seja tributada com alguma alíquota menor do que a devida, mas, de todo modo, o espaço para a fraude ou a sonegação será substancialmente reduzido em face da sistemática atual.
No aspecto arrecadatório, o que os fiscos cobrarão administrativa ou judicialmente se o imposto sobre o consumo já tiver sido antecipadamente pago? Quase nada. Restarão apenas aquelas situações raras e pontuais de transações que ocorrerão à margem do sistema implantado, por meio das operações “sem nota fiscal”, como já vislumbro em alguns mercados específicos e apenas em casos extremos, por exemplo: (1) na cadeia de comercialização de joias, na qual, pelo volume dos bens, é fácil adquirir, transportar e vender sem emitir documentos fiscais, ou (2) no caso de prestadores de serviços, fortemente impactados pela brutal majoração da carga tributária, que deixarão de emitir notas fiscais aos seus clientes, como os médicos de antigamente, que tinham um preço de consulta “com ou sem recibo”. Repito: serão casos pontuais. A esmagadora maioria das operações será alcançada pelo pagamento antecipado por meio do split payment.
Suponhamos que o split payment venha a ser financeiramente descalibrado, com o Fisco cobrando mais do que o devido. Por exemplo: (1) Em uma demanda coletiva o Judiciário declara inconstitucional determinada incidência por meio de controle difuso e o Fisco permanece cobrando via split payment — o contribuinte individual, representado coletivamente, terá que ingressar com uma medida judicial para que não ocorra o recolhimento de tributos no momento da liquidação financeira; ou (2) Pode-se ocorrer que, dentre inúmeras operações de uma grande empresa varejista, a somatória dos pagamentos em cada operação individual vier a ser maior do que o devido no conjunto do período — como receber o saldo positivo? A resposta teórica é fácil, pois bastaria compensar o crédito com as operações a débito no período posterior, mas, quem acredita que o Fisco venha a reconhecer e compensar esse valor de forma automática? Trata-se de outra situação na qual vai se intensificar a litigiosidade dos contribuintes contra o Fisco. Existe ainda (3) o problema dos depósitos para discussão judicial da incidência tributária, pois, até o presente momento, não há previsão de que eles gerem créditos para os contribuintes dentro do sistema.
O cenário é de uma ampla modificação na litigância tributária, fruto do sistema de split payment que está sendo implantado, pois o contribuinte não mais declarará o tributo devido. Ao revés, o Fisco é que receberá automaticamente, e de forma antecipada, em cada operação singular, o tributo que ele, Fisco, entende como devido.
Esse método de pagamento trará enormes implicações em matéria penal-tributária, pois sem a autodeclaração, haverá enorme redução do espaço jurídico para o mau contribuinte, de forma dolosa, subtrair o valor a ser pago ao Fisco, parcial ou totalmente. Com o recebimento antecipado, é o contribuinte que deverá buscar ressarcimento junto ao Fisco, visando identificar o montante correto a ser pago, em caso de alguma irregularidade ou imprecisão nos cálculos.
Constata-se que: (1) esta revolução na tributação do consumo tem nítida inspiração fiscalista, isto é, pró-Fisco; (2) o split payment foi nela introduzido como no velho mito do Cavalo de Troia, isto é, sem que os contribuintes percebessem o tamanho do problema que estavam incorporando para sua atividade empresarial, em especial com relação aos custos fiscais; e com isso, (3) a litigância tributária vai mudar de rumo, reduzindo a litigância do Fisco contra os contribuintes e aumentando a litigância dos contribuintes contra o Fisco, com todos os custos daí envolvidos, (4) e, ao que tudo indica, havendo forte impacto no âmbito penal-tributário, pois o pagamento será antecipado, afastando problemas como o das empresas “papeleiras”, isto é, aquelas que geram créditos a partir de notas fiscais sem lastro operacional; (5) mesmo nas operações irregulares com as empresas “reais”, cujos verdadeiros proprietários se ocultam sob interpostas pessoas, os “laranjas”, já terão pago antecipadamente os impostos sobre o consumo; o que (6) também afetará as empresas que se caracterizam como devedoras contumazes, que terão pago antecipadamente o que devem ao Fisco.
Em apertada síntese, a diferença entre infrações fiscais e delitos deve ser objeto de análise em diferentes estágios sucessivos.
Inicialmente passa por uma decisão de política governamental, que delimite o tipo de conduta que deve ser mais fortemente apenada por meio de restrições à liberdade individual em face daquelas que forem mais leves, sancionadas com multas e/ou restrições de direitos. Esse corte político normativo é que estabelecerá se a infração é ou não um delito.
Se houver amplitude no estabelecimento de condutas capituladas como crimes, estaremos diante de um Estado mais policialesco, punitivista. No caso diametralmente oposto, estaremos diante de um Estado mais leniente, mais permissivo. A delimitação encontra-se no Princípio da Intervenção Penal Mínima, própria dos Estados democráticos de Direito. A virtude estará na capacidade dos legisladores em delimitar o que é um crime do que é uma singela infração, respeitado esse Princípio.
Em outra etapa, deve-se analisar o ordenamento jurídico para identificar quais condutas foram delimitadas como infrações fiscais e quais foram estabelecidas como delitos, analisando-se o tipo criminal normativamente estabelecido. No caso brasileiro, isso está especificamente delimitado nos arts 1º e 2º da Lei 8.137/90.
Outra fase é a da interpretação judicial das normas positivadas, que, mesmo dentro dos limites do texto da lei, pode ser interpretada de forma mais punitivista ou mais garantista, como exposto acerca de algumas decisões do Supremo Tribunal Federal. No caso brasileiro, identifica-se um progressivo elastecimento jurisprudencial visando alcançar as lacunas normativas identificadas, acarretando o deletério uso do Direito Penal para fins arrecadatórios, deixando de lado a Reserva Legal Penal, o que gera enorme insegurança jurídica.
Com a adoção do split payment, teremos nova configuração da tributação do consumo, acarretando o pagamento do tributo de forma antecipada, modificando o sistema autodeclaratório existente. Isso reduzirá o espaço para os maus contribuintes deixarem de pagar os tributos na forma e quantidade corretas, pois já recolhido de antemão.
Em suma, a César o que é de César, como diz a conhecida frase bíblica. Cabe ao âmbito do Direito Tributário arrecadar, estabelecendo que seja infracional, e cabe ao Direito Penal determinar o que é delituoso. O limite é, para o primeiro, a Reserva Legal Tributária, e para o segundo, a Reserva Legal Penal, devendo ser, nos Estados Democrático de Direito, o delimitador das condutas o Princípio da Intervenção Penal Mínima.
Usar o Direito Penal para arrecadar é um erro, ainda mais quando isso ocorre pelo meio jurisprudencial, elastecendo a interpretação das normas penais. Seguir essa linha punitivista, ainda mais por meio da jurisprudência, à margem da Reserva Legal Penal, nos levará a cometer o mesmo erro de Simão Bacamarte, de Machado de Assis, encarcerando grande parte da sociedade.
No caso brasileiro, a adoção do split payment, com a introdução do odioso solve et repete, acarretará a redução da litigância do fisco contra os contribuintes, ampliando-a em sentido inverso, isto é, do contribuinte contra o fisco, e, ao que tudo indica, acarretará a redução do espaço para fraudes e sonegação fiscal, fenômenos típicos do direito penal tributário.
Fonte: Consultor Jurídico