15 de julho de 2025
Por Fernando Facury Scaff
Um dos temas financeiros mais interessantes é o das escolhas públicas, que, em face da escassez de recursos e da amplitude dos desejos, acarreta escolhas que são verdadeiramente trágicas, pois uma enorme parte ficará fora do orçamento, não alcançada pela arrecadação ou pelo gasto. Tais escolhas determinam quem fica dentro e quem fica fora do orçamento, pagando ou recebendo.
Quem estabelece essas escolhas? A resposta usual recai sobre o legislador, o que não deixa de ser verdadeiro; mas, como são feitas as escolhas do legislador? Aqui se adentra no terreno pantanoso dos lobbies públicos e privados, que agem em busca de uma fração do orçamento para “chamar de seu”. Muitas das vinculações orçamentárias e os duodécimos estabelecidos decorrem dessa atividade, que é primordialmente exercida no âmbito do Poder Legislativo, isto é, pré-norma, ou, como alguns doutrinadores preferem, no âmbito da política legislativa. Quem trabalha com o Direito usualmente inicia sua análise a partir desse ponto, isto é, quando a norma está posta, publicada. Pode até ter sua vigência diferida no tempo, mas está formalmente publicada e supõe-se ser de conhecimento geral.
É esse ponto que quero destacar: o pressuposto do legislador racional. Para tanto, valho-me dos ensinamentos de Tércio Sampaio Ferraz Jr. sobre hermenêutica [1].
Tercio expõe a existência de três diferentes línguas: a língua da realidade, a língua normativa e a língua hermenêutica. Segundo ele, “quando interpretamos, realizamos a passagem de uma língua, a das prescrições normativas, para outra língua, a da realidade”. Ou seja, a língua normativa contém um discurso prescritivo, pois não diz como as coisas são, mas como devem-ser; a língua da realidade é dominada pelo discurso do ser, sobre como as coisas realmente ocorrem; porém é a língua hermenêutica que faz a tradução, isto é, a passagem de uma língua para outra, por meio de regras próprias, utilizando-se também, de forma secundária, das regras básicas do ser e do dever-ser.
Para que funcione essa mediação da língua hermenêutica é preciso considerar um pressuposto, o do legislador racional, que Tércio expõe baseado em Santiago Nino, com diversas características.
É pressuposto que o legislador racional seja: (1) uma figura singular, embora possa ser colegiada, configurando-se como o legislador; (2) é permanente, pois não desaparece com o passar do tempo e a morte dos indivíduos; (3) é único, uma vez que estabelece normas para todo o ordenamento regido por aquela matéria; (4) é consciente, pressupondo-se que conheça todas as normas do ordenamento; (5) é finalista, pois ao aprovar uma norma tem sempre uma intenção; (6) é omnisciente, uma vez que ao legislar conhece todos os fatos, passados, presentes e futuros; (7) é onipotente, pois suas normas vigem até que outro legislador as substitua; (8) é justo, uma vez que jamais desejaria aprovar algo que se configurasse como uma injustiça; (9) é coerente, pois, mesmo quando se contradiz, basta que se invoque uma norma superior, posterior ou especial para sua análise; (10) é omnicompreensivo, pois o ordenamento tudo regula, direta ou implicitamente; (11) é econômico, uma vez que não utiliza palavras supérfluas, e cada norma tem uma função específica; (12) é operativo, pois todas as normas têm uma função; e (13) por fim, também é preciso, pois, apesar de se valer da linguagem natural, que possui vagueza e ambiguidade, pressupõe-se seu uso de forma técnica.
Será que existe toda essa racionalidade pressuposta na figura do legislador? Tenho certeza de que não, porém o pressuposto do legislador racional, na verdade, é o sustentáculo de dois princípios da hermenêutica dogmática: o da inegabilidade dos pontos de partida, que implica em afirmar que as normas devem ter um sentido básico, e o de que não deve haver conflito sem decisão.
Segundo Tércio, a língua da hermenêutica se apoia em um dever ser ideal, “que se apresentará como um dever ser sistemático, teleológico e sociologicamente efetivo. Afinal, para a dogmática, as normas jurídicas são vigentes dentro do sistema que integram, são eficazes, pois produzem efeitos na realidade social, e são dotadas de império, têm uma força que exerce uma função e um objetivo”.
Isso faz com que, sem o pressuposto do legislador racional, caia todo o arcabouço teórico do sistema jurídico.
Ocorre que não podemos mais nos limitar a estudar o Direito a partir da norma, sendo o pressuposto do legislador racional falso, porém necessário; é preciso também analisá-lo a partir do jogo de forças que atua na forma e no método de composição dos colegiados que produzem as normas (sejam as legais ou infralegais), e também na formação da norma dentro desses colegiados. É uma fase pré-normativa, bem sei, mas o estudo do Direito não pode e nem deve se ater ao estudo da norma posta, sob pena de soterrar a realidade de sua formação. Falo de processos de escolha desses colegiados e de processo legislativo-normativo, seja o orçamentário ou qualquer outro; afinal, aqui também há Direito a ser analisado.
Só ampliando o horizonte analítico é que conseguiremos identificar as razões pelas quais alguns ficam fora da arrecadação, ao não pagar ou pagar pouco, e outros ficam fora do gasto público, embora muito precisem de apoio estatal, e identificar as razões pelas quais existem os que ficam dentro do orçamento. Apenas assim conseguiremos saber como são produzidas as escolhas trágicas adotadas para realizar o gasto público em prol de alguns, o que é efetuado com o dinheiro arrecadado do bolso de vários de nós.
Peço ao leitor que releia a frase anterior e observe que não foi dito que é arrecadado de todos e gasto com todos. Este ponto é o mistério da composição das escolhas trágicas.
Fonte: Consultor Jurídico