15 de abril de 2024, 8h00
Chegamos ao final da minissérie. Último episódio. Os caros leitores e leitoras que clicaram nesta página possivelmente sabem que esta é a quinta e última parte de uma série panorâmica de outros quatro textos já publicados nesta ConJur (aqui 1; aqui 2; aqui 3 e aqui 4).
A despeito de ser a última, o assunto não está esgotado, pois permanecerá na pauta de preocupações de advogados, contadores, empresários e muitos outros profissionais por mais de três gerações, tantas são as alterações ocasionadas e as dúvidas que surgirão durante as próximas décadas — explico este ponto na parte final.
Logo surgirão as leis complementares, que trarão outras dúvidas, dando ensejo a novas análises. Assim, com esse texto, dou um até logo ao tratamento do tema de forma panorâmica, mas ele continuará na pauta, sob outros enfoques.
Espero que essa leitura, que ora se conclui, tenha sido proveitosa a cada qual dos raros leitores e leitoras que se atreveram nesta jornada.
Como é sabido, muitos estados não reconhecem os créditos de ICMS que as empresas possuem, o que é bastante usual entre as empresas exportadoras, que acumulam saldos credores sucessivos relativos aos resíduos de crédito decorrentes das operações anteriores à efetiva exportação, dentre outros.
Para regular a matéria, a EC 132 dispôs que tais saldos credores de ICMS acumulados até 31 de dezembro de 2032, serão aproveitados pelos contribuintes nos termos de lei complementar, estabelecendo desde logo balizas em seu texto (artigo 134, ADCT), que são: (1) deverá ser formalizado um pedido de homologação desses créditos perante o estado devedor; (2) ao final do prazo que vier a ser estabelecido pela lei complementar, não havendo resposta do Estado, tais créditos serão considerados como homologados; (3) o que se aplica também às homologações realizadas após 31 de dezembro de 2032.
Esse saldo será informado pelos estados ao Comitê Gestor do IBS, a fim de que seja abatido do que o Estado terá a receber de IBS, e os contribuintes possam compensá-lo com o que for devido a título desse imposto, considerando: (1) para os bens do ativo permanente, o prazo remanescente previsto na Lei Kandir (Lei Complementar 87/96); e (2) para os demais créditos, o que se configura na maior parte do valor devido às empresas exportadoras, em 240 parcelas mensais, iguais e sucessivas, o que representa 20 anos para que o efetivo ressarcimento venha a ocorrer, cabendo a aplicação de correção monetária pelo IPCA apenas a partir de 2033.
Alguns pontos merecem destaque na análise prévia que ora se faz, esperando que a lei complementar os encaminhe satisfatoriamente. Não foi prevista a possibilidade de os Estados simplesmente glosarem o pedido formulado, na íntegra ou em parte dele — como proceder? Haverá um contencioso lateral ao tema? A ser decidido por quem — pelo próprio Estado ou pelo CG? E se os estados não informarem os saldos ao CG, como proceder? Aguardemos a lei complementar.
Ademais, o prazo é longuíssimo, e alcança os créditos dos exportadores que permanecerão com esses criptoativos pendurados em seus balanços por cerca de duas décadas. Ajustes na legislação do Imposto de Renda poderiam minorar o problema.
Aplicar correção monetária apenas a partir de 2033 é um verdadeiro confisco. O correto seria corrigi-los desde a geração dos créditos. Isso é mais um item passível de judicialização.
O foco da EC 132 é a reforma da tributação do consumo, porém, foram alterados alguns poucos aspectos da tributação do patrimônio.
Para fins de IPVA foi estabelecido que (artigo 155, §6º): (1) terá alíquotas mínimas fixadas pelo Senado Federal, podendo variar em função do tipo, do valor, da utilização e do impacto ambiental do veículo; (2) incidirá sobre a propriedade de veículos automotores terrestres, aquáticos e aéreos, excetuados: (2.a) aeronaves agrícolas e de operador certificado para prestar serviços aéreos a terceiros; (2.b) embarcações de pessoa jurídica que detenha outorga para prestar serviços de transporte aquaviário ou de pessoa física ou jurídica que pratique pesca industrial, artesanal, científica ou de subsistência; (2.c) plataformas suscetíveis de se locomoverem na água por meios próprios, inclusive aquelas cuja finalidade principal seja a exploração de atividades econômicas em águas territoriais e na zona econômica exclusiva e embarcações que tenham essa mesma finalidade principal; e (2.d) tratores e máquinas agrícolas.
Isso corrige uma lacuna na tributação de veículos automotores aquáticos e aéreos, que estavam afastados do âmbito de incidência, conforme entendimento do STF, e permite a adoção da seletividade em razão de diversos aspectos desses veículos.
Para o ITCMD (artigo 155, §1º) foi estabelecido que, relativamente a bens móveis, títulos e créditos, a competência cabe ao Estado onde era domiciliado o de cujus, ou tiver domicílio o doador. Lei complementar estabelecerá a competência nas seguintes hipóteses: (1) se o doador tiver domicilio ou residência no exterior; (2) se o de cujus possuía bens, era residente ou domiciliado ou teve o seu inventário processado no exterior.
O ITCMD terá suas alíquotas máximas fixadas pelo Senado Federal (atualmente em 8%, conforme a Resolução 9/92) e não incidirá sobre as doações destinadas, no âmbito do Poder Executivo da União, a projetos socioambientais ou destinados a mitigar os efeitos das mudanças climáticas e às instituições federais de ensino.
O ITCMD será progressivo em razão do valor do quinhão, do legado ou da doação. Pelo texto, depreende-se que a progressividade atingirá a fração do que for recebido pelo herdeiro ou o legado (bem identificado) recebido pelo legatário.
Nesse sentido, o foco da progressividade é a parte transferida (quinhão ou legado recebido) de não o todo a ser transferido (herança ou legado, no sentido de quem o faz). A progressividade também alcançará as doações.
Bastante positiva foi a disposição inserida no artigo 155, §1º, VII, que estabelece uma hipótese de não incidência (verdadeira imunidade tributária) sobre as transmissões e as doações para as instituições sem fins lucrativos com finalidade de relevância pública e social, inclusive as organizações assistenciais e beneficentes de entidades religiosas e institutos científicos e tecnológicos, e por elas realizadas na consecução dos seus objetivos sociais, observadas as condições estabelecidas em lei complementar.
Ainda quanto ao ITCMD, foi disposto de forma transitória (artigo 16 da EC 132, em texto não encartado na Constituição) que, até que lei complementar regule essa matéria, este competirá: (1) relativamente a bens imóveis e respectivos direitos, ao estado da situação do bem; (2) Se o doador tiver domicílio ou residência no exterior: (2.a) ao estado onde tiver domicílio o donatário; (2.b) se o donatário tiver domicílio ou residir no exterior, ao estado em que se encontrar o bem; (3) relativamente aos bens do de cujus, ainda que situados no exterior, ao estado onde era domiciliado, ou, se domiciliado ou residente no exterior, onde tiver domicílio o sucessor ou legatário. Essa transitoriedade não especificou se as leis estaduais já existentes serão convalidadas, ou se novas deverão ser editadas nesse sentido. Outro tema que gerará bastante judicialização.
No que se refere ao IPTU (artigo 156, I, §1º e §1º-A) foi disposto que poderá ser progressivo em razão do valor do imóvel; poderá ter alíquotas diferentes de acordo com a localização e o uso do imóvel (seletividade) e ter sua base de cálculo atualizada pelo Poder Executivo, conforme critérios estabelecidos em lei municipal — observe-se que o texto da norma não menciona a palavra majorada, mas apenas atualizada, isto é, acrescida da inflação do período.
Foi também estendida a imunidade tributária sobre templos de qualquer culto (artigo 150, VI, “b”, CF) a fim de que alcance as entidades que sejam apenas locatárias do bem imóvel.
O grande mérito da EC 132 está em suas intenções de propor um sistema mais simples, conectado com o que há de melhor no mundo em matéria de tributação, encerrando a fratricida guerra fiscal interna, com não-cumulatividade plena e tributação no destino, sem onerar as exportações. Tudo isso é meritório e deve ser buscado e implementado pelas normas que virão e pelos procedimentos fiscais necessários à sua implantação e execução.
O problema principal da EC 132 está na opção técnica pelo método que foi adotado, pois optou-se por uma verdadeira revolução tributária constitucional, com mais de 37 páginas acrescidas à Carta apenas sobre essa matéria.
Ao invés, poderiam ter sido utilizados meios infraconstitucionais, como leis complementares (artigo 146, CF), leis ordinárias e resoluções do Senado, com baixa alteração na Constituição.
As possibilidades de judicialização são amplíssimas, pois cada palavra pode gerar um contencioso enorme, entupindo o Judiciário de alto a baixo, como foi pontualmente mencionado ao longo do texto. Alertas nesse sentido foram feitos maciçamente pela doutrina tributária (mas solenemente ignorados), a qual foi excluída dos debates, exceto em um ou outro ponto das audiências públicas realizadas. Deu a entender que quem criticasse a reforma proposta poderia falar, mas não seria escutado.
Um olhar sobre os diversos itens deste texto comprova esta tese:
O que efetivamente necessitaria de uma Emenda Constitucional seria a unificação do ICMS e do ISS, intento que justificou a revolução tributária realizada pela EC 132. Será que valeu a pena? Só o tempo dirá. Alternativas foram propostas, como a PEC 46, patrocinada pelos grandes Municípios, mas ignorada.
A fórmula de um federalismo simétrico foi vitoriosa, na qual todos os Estados e Municípios são tratados igualmente, mas, na verdade, olhando o território brasileiro, constatam-se muitas assimetrias entre os entes federados, sejam estaduais ou municipais, e deveriam ser tratados desigualmente, a fim de que tais diferenças fossem respeitadas e as desigualdades combatidas. Mas não foi esse o caminho trilhado. Agora Inês é morta e temos que seguir o caminho adotado.
Outras incertezas rondam o assunto, a partir do momento em que este texto está sendo escrito.
A Portaria 104, de 23/1/24, da Secretaria Extraordinária de Reforma Tributária criou diversas instâncias incumbidas de elaborar o anteprojeto das leis complementares. Há uma Comissão de Sistematização, um Grupo de Análise Jurídica, 19 Grupos Técnicos e uma Equipe de Quantificação.
Foram designados seus membros, porém nenhum que represente a sociedade civil, sejam os contribuintes, seja a doutrina jurídico-tributária. É como se essas instâncias simplesmente não existissem e devessem apenas pagar o que vier a ser cobrado, ou falar para não serem escutados. A qualidade de seus membros é indiscutível, mas nenhum representa os contribuintes. E quem define o modelo, define o rumo do debate parlamentar na etapa posterior.
Outra incerteza está na dinâmica do CG. Não há dúvida que governadores e prefeitos individualmente perderam poder político, o poder de tributar e de isentar. Poderá esse órgão se tornar um embrião de outro, no qual estes chefes do Poder Executivo emerjam com maior poder, pois falarão em conjunto? Não se sabe. Isso foi muito importante na época da pandemia de Covid-19, por meio dos consórcios regionais.
É curioso observar como um sistema tão complexo foi votado a toque de caixa, com um prazo enorme para ser efetivamente implementado. Não teria sido melhor discutir e planejar ao longo do tempo, ao invés de aprovar de improviso tantas alterações substanciais? Nenhum estudo de impacto econômico foi apresentado pelo governo federal, mas, mesmo assim, a reforma foi aprovada.
Votou-se rapidamente, sem planejamento, para ser implantado lentamente — mais adequado teria sido o procedimento inverso: planejar lentamente e implantar a médio prazo. Adiar não é planejar, é empurrar o problema para as próximas gerações, a fim de obter um atual consenso para aprovação.
Dizer que se trata de um tema que estava em debate há décadas é um argumento falso, pois, como se demonstrou no início desta minissérie, diversas outras propostas tramitaram, sob outros presidentes, e naufragaram. Por qual razão o governo Lula 3 encampou uma reforma tributária apresentada pelo governo Bolsonaro, francamente contra a Federação e altamente complexa?
Não há como explicar, exceto usando uma frase de um filme de 1997, intitulado O Advogado do Diabo, no qual o ator Al Pacino, representando o diabo, diz na cena final: meu pecado favorito é a vaidade.
A manutenção da competência tributária da União sobre as contribuições (sociais, de intervenção etc.) é muito preocupante, pois foi o instrumento utilizado para desfigurar completamente o federalismo no sistema tributário desenhado pela Constituição em 1988.
Caso essa competência não seja revista, o que já está desbalanceado e foi tornado pior, o problema se agravará. Aqui está o calcanhar de Aquiles do sistema, e que deve ser enfrentado.
Enfim, é o que temos.
Para explicar com alguma precisão como aqui chegamos, toma-se outra imagem, agora de um livro de Mario Vargas Llosa, intitulado O Paraíso na Outra Esquina.
Diz o autor que o “jogo do paraíso” é uma antiga brincadeira conhecida em diversos países, no qual uma criança corre até a outra e pergunta: “o paraíso fica aqui?”, e recebe como resposta, “não, fica na outra esquina”, e seguem em desabalada correria esquina a esquina, até se cansarem.
A sociedade brasileira está correndo de esquina a esquina em busca de soluções para seus problemas. A EC 132 pode até vir a ser uma solução para a reforma da tributação do consumo, mesmo com todos os problemas apontados. Espera-se que seja. Foi um salto no escuro, pois não houve prévio planejamento governamental e optou-se por uma revolução constitucional tributária, mas estamos todos torcendo a favor, sentados na arquibancada assistindo ao jogo — e sofrendo.
FONTE: https://www.conjur.com.br/2024-abr-15/panorama-sobre-a-ec-132-um-salto-no-escuro-com-torcida-a-favor-final/