Consultor Jurídico, 10 de maio de 2020
Por André Boselli
A crise da epidemia de Covid-19 gera a necessidade de investimento do Estado para implementar políticas públicas de saúde. Mas com as restrições às atividades econômicas, a própria solidez da economia também é posta à prova. Essa é a primeira fase da crise, que demanda salvaguardas à saúde das pessoas e das empresas. Passada a turbulência, vem uma segunda etapa: a de reconstrução do sistema econômico.
Esse é a leitura feita pelo advogado Fernando Facury Scaff, colunista da ConJur, em entrevista por telefone. Tributarista e professor titular de Direito Financeiro da USP, ele afirma que o Estado, diante da queda na arrecadação e do aumento de gastos, não pode ceder à tentação de “tirar a forra” e recrudescer a carga tributária. Para ele, passada a “primeira fase”, deve haver “apoio integral às empresas, com endividamento do Estado”. “A etapa futura não poderá ser pela via tributária, que quebrará o sistema que sobreviver à primeira fase.”
Para isso, Scaff não tem dúvidas: a política econômica mais apta a reconstruir a economia deve se inspirar no chamado new deal, programa do presidente norte-americano Franklin Delano Roosevelt para combater a crise de 1929. Referindo-se a John Maynard Keynes — que inspirou o new deal — e comparando-o a Friedrich Hayek — economista da matriz libertariana, contra a intervenção estatal na economia —, Scaff resume: “A fórmula é Roosevelt, é Keynes. E não Hayek”.
Noves fora, a saída de emergência certamente não será aberta pelo Judiciário: “o adequado seria uma movimentação dos órgãos legislativos e executivos”. Que, no entanto, estão sendo tímidos. “Quando falo de medidas tímidas, eu quero dizer: ‘É necessário ser mais agressivo na desoneração, mais agressivo na renúncia fiscal. Esta é a hora’.”
Na entrevista à ConJur, o professor falou também sobre reforma tributária e criticou a maneira como o Executivo federal está politicamente conduzindo a crise: “Falta um gabinete de crise, falta comando”.
Confira a íntegra de entrevista:
ConJur — Quando surgiram os primeiros efeitos da crise econômica decorrentes da epidemia de Covid-19, muitas empresas ingressaram na Justiça pedindo que as datas de pagamentos de tributos fossem adiadas. Em um primeiro momento, muitos desses pleitos foram acolhidos. Mas a segunda instância tem revertido essas decisões. Esse diagnóstico está correto?
Fernando Facury Scaff — Sim. A ideia que preside esse movimento é que a primeira instância é sempre mais próxima do cidadão. E que acolhe com mais agilidade as expressões e os pedidos do pleito. Assim, ela tem a sensibilidade de atuar perto das ansiedades dos contribuintes. Já a segunda instância tem uma dinâmica diferenciada, é um pouco mais afastada do cidadão e tem uma visão de Estado, de governo, gostemos ou não. Portanto, em um dado momento, para evitar uma avalanche de pedidos, quase que uma “corrida ao fundo do poço” — na qual quem tem a sorte de cair no juiz “a” e não no juiz “b” consegue a vantagem que o outro não está conseguindo — o que a instância superior faz? Segura tudo, prende tudo. Infelizmente, essa dinâmica está presente e a gente identifica isso no movimento que está acontecendo hoje, seja nos âmbitos estaduais — todos os estados estão com situação semelhante —, seja no âmbito federal, nas diversas circunscrições.
ConJur — E o que seria mais recomendável, em termos tributários, para este momento que vivemos?
Fernando Facury Scaff — O adequado seria uma movimentação dos órgãos legislativos e executivos, e não do Judiciário, porque a disputa perante o Judiciário acaba gerando essa “corrida ao fundo do poço”: todo mundo vai tentar obter junto ao juiz, que é sorteado, a apreciação do seu processo, para convencê-lo de que é necessário postergar o pagamento. E isso gera uma incerteza enorme, porque o cliente vai questionar os advogados por que o concorrente, em uma outra ação, obteve liminar, e por que ele, cliente, não teve a liminar — pois não deu a sorte de cair com um juiz que teve sensibilidade com a dificuldade existente.
O Judiciário consegue resolver as questões que estão fora da curva da norma. Mas é a norma, a lei, que vai tratar os parâmetros de isonomia entre os contribuintes. Se esta lei não vier, será essa “corrida ao fundo do poço”. Então, já tardam providências do Legislativo e do Executivo de todos os níveis federativos para dar esse suporte, postergando pagamento de tributos nesse aspecto que eu estou chamando de “primeira fase da crise”. Essa é uma fase muito mais centrada em salvar vidas, em manter a saúde das pessoas, que são coisas diferentes, mas correlatas, e manter a empregabilidade das pessoas, salvando as empresas.
ConJur — E qual seria a segunda fase?
Fernando Facury Scaff — É quando a parte da saúde estiver estabilizada. Então, quando começar a flexibilizar esse resguardo em que todos estamos, esse distanciamento social, e as empresas e os comércios voltarem a abrir regularmente, mesmo que seja de maneira paulatina, eu vislumbro uma segunda etapa, que é a superação da crise sanitária, para uma outra etapa, que é de ir às empresas saudáveis. E o meu temor é que, nessa segunda fase, o Estado — em sentido amplo (União, estados e municípios) — queira “tirar a forra”, como se diz no popular, tributando mais fortemente as empresas. Ele terá se endividado vastamente, porque haverá seguramente um desequilíbrio financeiro, pois há menos arrecadação e mais gastos com saúde.
Então, se nessa segunda fase a saída for tributária, nós estaremos todos perdidos, porque cobrarão mais tributos das empresas nesse momento em que elas terão sobrevivido e tentarão sobreviver, já em uma fase de retorno à normalidade. A saída pelo tributário será um erro, porque elas terão dificuldades de pagar os tributos correntes. Imagina se o “saco de maldades” dos fiscos vier a ser aberto com empréstimos, compulsórios, com criação de tributação sobre dividendos, com imposto sobre grandes fortunas, com aumento de cargas tributárias, com mais multas, mais juros… Quer dizer, todo esse pacote que se avizinha em uma segunda fase é muito negativo, por isso que sempre trabalho com duas etapas. A etapa agora é de apoio integral às empresas, com endividamento do Estado. A etapa futura não poderá ser pela via tributária, que quebrará o sistema que sobreviver à primeira fase.
Tem um aspecto relevante: uma empresa, uma vez destruída, é muito difícil de ser reconstruída. Porque você tem que reconectar todos os canais de fornecedores, todo o mercado comprador, todo o sistema de expertise que pode ter sido destruído pela perda dos empregos. Então, existem inúmeros fatores de organização de uma empresa. E é uma dificuldade enorme reconstruí-los. Portanto, quando se diz “preservar emprego”, não é só preservar em favor do empregado. Isto é muito importante. Mas também em favor da própria empresa, que pode precisar, na retomada que virá, ter toda a expertise de bons vendedores, ou bons operários, ou bons agricultores que possam recriar as cadeias produtivas.
ConJur — Essa redistribuição forçada de renda que tem sido feita — por meio do auxílio emergencial — vai produzir algum efeito positivo na economia?
Fernando Facury Scaff — Sim, sem dúvida. Eu não diria na economia apenas, eu diria que isso salva vidas. Esse dinheiro, que está sendo pago com muita dificuldade — dificuldade logística de fazer o dinheiro chegar às pessoas —, vai reativar a economia em parte, mas o foco central é salvar vidas. É uma medida correta de gasto público. Salva vidas e, perifericamente, reativa a economia.
ConJur — Para além do auxílio emergencial, qual é a sua avaliação sobre as medidas, de modo geral, que têm sido adotadas?
Fernando Facury Scaff — Eu acho que o governo federal tem sido tímido nas medidas. E os governos estaduais, no âmbito financeiro e tributário, também. Ou seja, medidas de maior alcance poderiam ser feitas. Vou dar um exemplo: o parâmetro geral que tem sido adotado nos governos federal, estadual, municipal é de postergação do pagamento do tributo. Postergar, diferir, quer dizer que você não vai pagar hoje mas vai pagar daqui a algum tempo. Ok, alguns demoram sessenta dias, noventa, que seja. Mas esse mecanismo é ruim. Quer dizer, é bom porque ele dá um fôlego. Mas é ruim porque daqui sessenta dias o sujeito vai ter que pagar o tributo corrente e mais o que foi adiado.
Então, essas medidas são medidas paliativas e que só estão jogando o problema para frente. Em algum momento, essa superposição do pagamento do corrente com o que foi postergado vai gerar dificuldade nas empresas. Portanto, quando falo de medidas tímidas, eu quero dizer: “É necessário ser mais agressivo na desoneração, mais agressivo na renúncia fiscal. Esta é a hora”. O risco é que os governos que vão “tirar a forra”, cobrando mais quando o risco de saúde tiver passado. Por isso que sempre saio pela lógica do endividamento do governo federal e transferência de dinheiro de estados e municípios. A União tem que se endividar. Porque os estados e municípios não conseguirão sequer fazer os pagamentos correntes em mais trinta, sessenta dias. O socorro para esses estados terá que vir da União.
ConJur — Alguns dizem que a crise de 2008 só foi minimamente estancada porque os estados abriram o bolso. Ainda assim, o paradigma de economia política que se viu desde então foi mais liberal, pelo não intervencionismo. A crise atual vai gerar um Estado mais liberal ou mais à moda new deal?
Fernando Facury Scaff — A crise de 2008 não serve como um imediato paradigma para a situação atual, porque em 2008 nós tivemos uma crise econômica decorrente do sistema financeiro norte-americano. O que nós temos hoje é alguma coisa completamente diferente, porque não há uma crise econômica, há uma crise de saúde pública. Mundial. Então, a crise econômica há de vir da crise de saúde. Agora, posteriormente a esta crise, ou seja, para sairmos do buraco, vamos precisar muito mais de Roosevelt do que de governos liberais. Precisamos de um new deal. A fórmula é Roosevelt, é Keynes. E não Hayek. O que nos coloca, no Brasil, em uma situação muitíssimo complicada, porque o nosso establishment público, o Paulo Guedes [ministro da Economia], o Roberto Campos Neto [presidente do Banco Central] e outros, são todos liberais. Como é que você vai ter uma pegada necessariamente keynesiana a partir de pessoas que estão focadas, enquadradas, formatadas por uma lógica liberal hayekiana? Vai ser difícil.
ConJur — Ainda em relação a como o governo de modo geral está reagindo à situação, na sua opinião essa edição sucessiva de medidas provisórias é o melhor caminho para tentar gerir a crise sanitária?
Fernando Facury Scaff — Seguramente não. Falta um gabinete de crise. Falta comando no governo federal e, consequentemente, os governadores passam a ter mais protagonismo. Os governadores estão fracionadamente estabelecidos — o que, de certo modo, não é negativo. Mas falta uma coordenação central de todas essas operações. Por que eu quero dizer que não é negativo? Porque essa crise tem uma dimensão federalista, federativa, que a gente precisa entender. Seguramente o problema de saúde na cidade de São Paulo é diferente do que ocorre na cidade de Tanabi, no interior de São Paulo. Diferente do que acontece em Fortaleza de Minas, no interior de Minas Gerais, e diferente do que acontece em Bujaru, no interior do Pará. Então, a abertura e o fechamento de comércio, indústria e outras atividades em cada qual deles deve ter uma dinâmica distinta. A lógica federativa é uma lógica positiva nesse sentido. Mas volto à pergunta sobre as medidas provisórias: falta um gabinete de crise, alguma coordenação central, algo que dê um ordenamento para esse pandemônio que estamos vivendo no meio desta pandemia.
ConJur — O voto do ministro Gilmar Mendes usou a expressão “política dos governadores” (ao se referir à competência concorrente para medidas de saúde pública, no julgamento da ADI 6.341). A pergunta é: corremos risco de essa “política dos governadores” invadir também o campo tributário? Estamos diante da possibilidade de um novo ciclo de guerra fiscal?
Fernando Facury Scaff — A Constituição delimita muito bem a competência de cada estado. E a guerra fiscal do ICMS já foi de alguma maneira complementada pela LC 160/2017, aprovada ainda na época do governo Temer. Então, eu diria que não se trata propriamente de uma nova etapa de guerra fiscal, mas sim de um protagonismo político dos governadores. Agora, isso não se refletirá em mais poder para eles, porque a estrutura tributária amarra os governadores a certos limites. Vamos olhar para o passado. Até pouco tempo atrás, a guerra fiscal era uma guerra de redução de carga tributária. O que se avizinha para frente com os estados ainda mais quebrados não será uma política de redução, será uma política de incremento.
Fernando Facury Scaff — A epidemia que estamos vivendo e as suas consequências econômicas tornam mais urgente a reforma tributária? Ou as discussões sobre ela devem ficar momentaneamente paralisadas?
Fernando Facury Scaff — As propostas de reforma tributária que estão em trâmite, a PEC 45 e a PEC 110, devem ser arquivadas imediatamente. Se elas já não eram boas na época da normalidade, no pós-normalidade elas se revelam piores do que se imagina. Vou dar um exemplo: se aquelas duas propostas já estivessem vigorando, nenhuma medida de redução de carga tributária sobre o consumo poderia ser adotada. Nenhuma. Então, essa redução de tributação que você vê hoje sobre alguns medicamentos, sobre máscaras, sobre alguns equipamentos de saúde, não poderia ser adotada, o que aponta para um erro crasso no desenho que estava sendo feito. Então, a meu ver, as propostas têm que ser arquivadas e algo novo tem de ser desenhado. Não quer dizer jogar fora o sistema tributário que existia antes, mas é um novo desenho de propostas de reforma tributária, aproveitando o que existe hoje e não querendo reconstruir o mundo.
ConJur — Qual seria o erro crasso dessas duas propostas?
Fernando Facury Scaff — Seria impedir a flexibilidade na tributação do consumo. Porque as propostas impediriam a concessão de incentivos fiscais sobre consumo. E consumo aqui em geral. Não estou falando só de ICMS, mas dos pacotes com PIS, Cofins, IPI, Cide, ISS. Esses pacotes estão como que amarrados na reforma tributária, nas duas propostas. As duas impediriam esse tipo de procedimento, o que aponta para um erro de ambas.
ConJur — Desde a Constituição de 1988, houve uma centralização tributária na União. Isso tem que ser revisto?
Fernando Facury Scaff — Sem dúvida. Mais um motivo para arquivar as duas propostas de reforma tributária. Porque elas centralizam poder na União. Em vez de serem reformas descentralizadoras, elas concentram poder na União. Até mesmo quem tiver uma lógica vinculada ao bolsonarismo tem de olhar e dizer: “o discurso não era ‘menos Brasília e mais Brasil’”? Como voltaram as reformas tributárias propondo mais força em Brasília?
ConJur — O risco de populismo tributário aumenta?
Fernando Facury Scaff — Não tenho a menor dúvida. É só você ver que estão discutindo na Câmara agora uma proposta de empréstimo compulsório em meio dessa confusão [PLP 34/2020]. É inadequado. Eu até acho que essas medidas podem ser debatidas depois. Mesmo depois, estarão erradas, mas debater nesta fase? É um erro. Quer dizer, as empresas estão tentando sobreviver e o Fisco querendo cobrar mais?
ConJur — E, à luz do que foi conversado, como fica a emenda constitucional 95, conhecida como “emenda do teto de gastos”?
Fernando Facury Scaff — Por um aspecto que alcança os gastos em geral, ela vai receber alguma emenda dizendo que a correção monetária de ano para ano, ou seja, reposição de inflação, não vai ser feita. Então, nesse aspecto, acho que a regra do teto será até mais fortemente apertada. Por outro lado, o trecho que trata não dos gastos em geral, mas dos gastos com saúde e educação, esses dois tópicos, em razão do gasto enorme com saúde, terão que ser flexibilizados. Então, acho que a dinâmica vai acontecer em um aperto para todos os gastos, retirando a correção monetária — a reposição inflacionária automática — que é prevista na emenda do teto, e, por outro lado, os gastos com educação e saúde serão seguramente flexibilizados. Aliás, o que toda a sociedade inteligente vinha dizendo há muito tempo. Ou seja, não pode colocar em uma amarra gastos com saúde e educação.
ConJur — Nesta quinta-feira (8/5), o Congresso promulgou a emenda constitucional apelidada de “orçamento de Guerra”, que flexibiliza gastos do governo durante a epidemia. Ela é o caminho para que a União possa se endividar e transferir recursos aos demais entes de federação, dispensando o aumento de carga tributária? Ou seus efeitos tendem a se restringir ao que o senhor está chamando de “primeira fase da crise”?
Fernando Facury Scaff — Essa emenda não traz a ideia de endividamento fora da crise. Apenas durante ela. E se complementa por outra lei que deve ser editada na sequência, de transferência de recursos para estados e municípios. Pode ser que resulte em endividamento sem aumento de tributos, mas a decisão será posterior. A depender de seu manejos. Tudo indica que será usada apenas para a primeira fase. A da calamidade sanitária.
ConJur — E o que mudanças normativas deveriam ser feitas para que também haja medidas tributárias para a “segunda fase”?
Fernando Facury Scaff — Decisão política de maior endividamento da União e transferência a custo zero para estados e municípios.
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