26 de setembro de 2023
Por Fernando Facury Scaff
Todos sabemos que a federação é uma cláusula pétrea de nossa Constituição (artigo 60, §4º, I), porém qual seu conteúdo? Sem saber no que ela se constitui, teremos algo como uma girafa sem pescoço — será mesmo uma girafa?
Essa metáfora me ocorreu ao ouvir incontáveis discursos sobre federalismo, sem que haja um conteúdo mínimo que defina o que vem a ser uma Federação. Bem sei que não existe uma federação igual à outra, e nenhuma tem três níveis, como a brasileira (para saber como isso ocorreu na nossa constituinte, ver aqui. O fato é que federalismo tem pertinência com autonomia, isto é, a capacidade de se autogovernar. Nossa Federação já limita fortemente a capacidade de autogoverno dos estados e municípios, nas complexas e mal interpretadas disposições acerca das competências comuns e concorrentes previstas nos artigos 23 e 24, o que reflete nos artigos 25 e 29, todos da CF.
Se existe um ponto no qual a definição de autonomia federativa é bem delineada encontra-se na autonomia arrecadatória dos entes federados, que mescla a possibilidade de arrecadação direta de tributos (por meio da competência tributária) e transferida (fundos de participação e assemelhados), ambas se constituindo em receitas próprias de cada ente federado. Porém até mesmo essa autonomia arrecadatória está sendo alterada pela PEC 45-A, que propõe criar um Conselho Federativo para gerenciar o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), que será compartilhado entre estados e municípios.
Ocorre que, ao lado desse Conselho Federativo, proposto pela PEC 45-A, já foi criado um Conselho da Federação em abril deste ano, por Decreto presidencial. Além disso, teoricamente, o Senado é desenhado para ser a Casa da Federação. Parece que o desenho jurídico ora sob análise do Senado na PEC 45-A gerará muito ruído institucional em futuro próximo.
O Conselho da Federação, instituído pelo Decreto 11.495/23, prevê em sua composição a participação de membros do Fórum de Governadores, de cinco consórcios regionais dos estados (Consórcio Amazônia Legal, Consórcio Nordeste, Consórcio Brasil Central e Consórcio de Integração Sul e Sudeste), e de membros da Associação Brasileira de Municípios, da Confederação Nacional de Municípios e da Frente Nacional de Prefeitos.
Sua competência visa, dentre outras, “contribuir para a formulação de políticas públicas nacionais, em especial aquelas de implementação descentralizada pelos órgãos e pelas entidades da administração pública estadual, distrital e municipal, e de propostas de reformas institucionais de interesse comum aos níveis de governo federal, estadual, distrital e municipal”. A União tem assento nesse conselho através de quatro ministros e do presidente e vice-presidente da República.
Por outro lado, o Conselho Federativo previsto pela PEC 45-A, estabelece sua composição com 54 membros, sendo 27 representando os Estados e outros 27 representando os Municípios, sem a participação da União, mas que terá de se articular com ela para harmonizar a cobrança do IBS com a da CBS (artigo 156-B, §5º). Aqui existe uma pegadinha, pois, a pretexto de dar autonomia aos estados e municípios, a União acabará tendo um poder extraordinário sobre tal conselho, pois não terá voto explícito e sem dele fazer parte.
Melhor seria haver a presença da União nesse conselho, com poder de voto relativizado, quanto a essa harmonização. Aqui a possibilidade de fricção de interesses será enorme, se mantido o desenho proposto. É necessário relembrar que esta PEC dá aos entes menores de nosso federalismo o poder de alterar as alíquotas do IBS de maneira uniforme, isto é, se o estado de São Paulo quiser modificar sua alíquota de IBS terá que o fazer do feijão ao avião, isto é, alíquota será uniforme por unidade federada.
Não haverá seletividade (além das poucas hipóteses previstas), o que acabará por colocar uma camisa de força em sua autonomia tributária – esse aspecto já foi muito bem exposto por Hamilton Dias de Souza e outros colegas de grande relevo.
Se a análise ficasse apenas na comparação entre esses dois conselhos, já haveria enorme potencial de conflito, pois o poder de tributar estaria em um (Conselho Federativo, o da PEC) e o de gastar e harmonizar as relações federativas está em outro (Conselho da Federação, o do decreto).
Porém ainda existe o Senado, que está sendo escanteado nesse jogo. Sabe-se que o Senado é composto por número igual de representantes, visando equilibrar a federação brasileira, enquanto na Câmara o número é variável, de acordo com a população de cada Estado. Logo, qual seria o papel do Senado entre esses dois conselhos? Ficará sem nada, pois não poderá tratar da arrecadação, nem do gasto, e muito menos da articulação federativa, tornando-se mais parecido com uma “câmara de senadores”, do que a Casa da Federação.
Muito mais poderia ser dito, mas o que se deflui dessas poucas linhas é que o desenho institucional que está sendo elaborado causará problemas na articulação federativa. Estados e municípios terão seu poder tributário limitado no âmbito do Conselho Federativo (o da PEC), mas terão voz no Conselho da Federação (o do Decreto), e o Senado terá seu papel esvaziado.
Exatamente por tudo isso que os estados incluíram na PEC 45-A o artigo 19, que lhes permitirá tributar o comércio de produtos primários e semielaborados, constitucionalizando uma fonte de arrecadação à margem do Conselho Federativo, que eles utilizarão com vigor.
Não seria mais fácil rever isso enquanto há tempo? O temor é que, uma vez aprovado pelo Senado o Conselho Federativo (o da PEC) levaremos uma dezena de anos para consertar isso, e nossa Federação ficará como uma girafa sem pescoço — será mesmo uma girafa? Caso aprovada a PEC 45-A nos moldes propostos ainda teremos uma Federação?
Fonte: Consultor Jurídico