Por Fernando Facury Scaff e Élida Graziane Pinto
Folha de São Paulo, 20/03/2020
Supremo retoma debate sobre a judicialização da saúde
Nesta quarta-feira (11) o plenário do Supremo Tribunal Federal retomará o debate da judicialização da saúde. Estão em pauta (i) o fornecimento de medicamentos não relacionados no programa estatal de dispensação de medicamentos em caráter excepcional (RE 566.471); (ii) a concessão de medicamentos não registrados na Anvisa (RE 1.165.959); e (iii) o dever de progressividade no piso federal em ações e serviços públicos de saúde (ADI 5595).
O que há em comum entre esses três processos, além da sua profunda repercussão para o nosso SUS, é a disputa por verbas orçamentárias para a concretização dos direitos sociais, com responsabilidade de custeio por toda a sociedade
Trata-se de mais um desafio para a macrojustiça em nossa sociedade, voltada às ações de saúde, sobretudo diante do risco de pandemia mundial do covid-19 (novo coronavírus), já assumido pela Organização Mundial de Saúde nesta semana.Uma solução insuficiente proposta pelo governo federal é a da abertura de crédito extraordinário para conciliar os limites do teto da emenda 95/2016com as necessidades de despesas emergenciais dessa pandemia. Todavia,apostar nos créditos extraordinários não é uma solução adequada, pois pontual e ocasional.
O sistema judicial pode fomentar o alcance de soluções perenes na via ordinária da política pública de saúde. Foi nesse sentido que, em 2009, o ministro Gilmar Mendes cunhou o termo “macrojustiça” após a primeira audiência pública convocada no STF para tratar da judicialização da saúde nos autos da Suspensão de Tutela Antecipada 175. Era um contraponto à“microjustiça” das milhares de demandas individuais, com pleitos de medicamentos e procedimentos a serem ofertados pelo SUS.
A efetividade do sistema público de saúde brasileiro tem sido historicamente colocada em contraste com os seus supostamente elevados custos e com suas mazelas político-gerenciais. Fosse cumprida a Constituição de 1988, o financiamento da política pública de saúde não seria tão instável ao ponto de se tornar um impasse judicializado. Conforme o artigo 55 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, 30% do orçamento da Seguridade Social deveria ir para o SUS, o que, em valores atuais, quase dobraria a dotação orçamentária do Ministério da Saúde.
Infelizmente, sucessivas emendas constitucionais, regulamentações e restrições interpretativas mitigaram o alcance operacional e financeiro do SUS, sobretudo para reduzir proporcionalmente o dever de gasto mínimo federal em saúde. Enquanto isso, estados e municípios têm sido compelidos—judicial e socialmente— a expandir seus gastos em saúde muito além dos seus respectivos pisos. Ao longo do tempo, uma verdadeira guerra fiscal de despesas se instalou no SUS, cuja face mais imediata é a sobrecarga da microjustiça da saúde em torno dos processos individualizados que também,por óbvio, sobrecarregam o sistema de Justiça.
A retração da União no custeio da política pública de saúde agrava o cenário de disputa na pactuação federativa e de fragilidade do planejamento sanitário. Esse é o contexto em que se emparelham a emenda 86/2015 (cujos artigos 2º e 3º estão em debate na ADI 5595) e a emenda 95/2016, que simplesmente assegurou correção monetária aos pisos federais em saúde e educação e desconstruiu sua relação de proporcionalidade com a arrecadação da União.
A cautelar concedida pelo ministro Ricardo Lewandowski na ADI 5595 é,nesse contexto, um ponto culminante sobre a inconstitucionalidade de pontuais mitigações ao dever de progressividade no custeio do direito à saúde.
Mais do que julgar individualmente o acesso a medicamentos e procedimentos ou mesmo de adotar a solução “ad hoc”de abrir crédito extraordinário para o SUS, é necessário fazer justiça e respeitar a Constituição, resguardando que haja financiamento juridicamente estável e fiscalmente progressivo conforme o nível da arrecadação estatal para os gastos com a saúde pública.
Nenhuma outra macrojustiça é mais urgente para o direito à saúde pública em nosso país, até mesmo como meio de enfrentamento racional e estruturante da crise pandêmica do coronavírus. Para fortalecer esse sistema, o STF deverá pautar em primeiro plano a ADI 5595 e confirmar acautelar já concedida —urge que isso seja feito, pois a diferença financeira é relevante e impactará os próximos 16 anos caso se mantenha o prazo dado pela emenda constitucional 95, do teto de gastos.
Vedar retrocessos normativos no custeio e na gestão federativa do nosso sistema de saúde pública o habilitará a prevenir e enfrentar quaisquer surtos,epidemias e pandemias. Este é o caminho da macrojustiça social, que vai além da estrita e excepcional fronteira do controle judicial individualizado.
Para atingir tal finalidade, a mais importante ação em debate no STF é a ADI5595.
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