06 de agosto de 2021
Por Paula Cristina
Na cabeça do ministro da Economia, Paulo Guedes, a conta é simples: se o governo tem R$ 96 bilhões sem carimbo no Orçamento de 2022 e precisa de R$ 90 bilhões apenas para liquidar precatórios, a conta não vai fechar. Para impedir o que ele chamou de “shutdown da máquina pública”, o governo desenhou uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) para parcelar e empurrar o pagamento para o final da década. O problema é que por trás dessa equação simplória do ministro reside muito mais que um parcelamento. Trata-se de uma estratégia para acomodar no além-teto de gastos novas despesas com programas sociais, obras e medidas eleitoreiras em ano de pleito. Não houvesse tal interesse, a própria Constituição já teria ao menos três dispositivos que aliviariam o pagamento dos precatórios sem incorrer em crime de responsabilidade.
Ao se dizer “surpreso” com os valores das dívidas da União, Guedes deixou o mercado dividido: os que acham absurdo um ministro da Economia não saber quanto deve em precatórios e os que entendem a reação como puro teatro. Na opção A ele é tolo. Na B, mentiroso. Seja qual for a percepção nessa novela, alguns receios são iguais. Entre eles, o calote. Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central, é um dos que olha o movimento do governo com cautela. “Isso aí tem cheirinho de calote, é preocupante”, disse.
“Isso aí tem cheirinho de calote. É preocupante”
Armínio Fraga Ex-presidente do BC.
O ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega também criticou os planos do governo Bolsonaro. Segundo ele, Guedes está tratando os precatórios como uma dívida de segunda categoria. “É uma dívida líquida e certa, determinada na Justiça. Tem o mesmo peso da dívida pública”, disse. “O plano é ter margem para financiar o Bolsa Família. Portanto, é uma medida puramente eleitoreira”, afirmou.
Em defesa de seu plano, Guedes garantiu não se tratar de calote. “E os maiores [credores] terão uma alternativa de usar um poder liberatório para acelerar a transformação do Estado brasileiro”, disse, durante evento do Instituto Brasiliense de Direito Privado (IDP). Essa transformação a que o ministro se refere faz parte da PEC que deve ser apresentada nos próximos dias pelo governo. Além de um programa de reparcelamento, o projeto cria um fundo de precatórios, alimentado pela venda de estatais, de imóveis da União e lucro com participação em empresas privadas. “Devo, não nego, pagarei assim que puder. Estou criando esse fundo para que vendendo as estatais vocês possam usar mais rápido possível”, afirmou. Segundo o ministro, o parcelamento para dez anos seria destinado aos “superprecatórios” (acima de R$ 66 milhões). Já os precatórios até R$ 66 mil serão pagos à vista. O restante dependerá da capacidade da União. “Vamos transformar uma crise em uma oportunidade”, disse. A PEC ainda deve destinar 20% do fundo para programas sociais. Caso aprovada ela mexerá, além do teto de gastos, na regra de ouro e na Lei de Responsabilidade Fiscal, já que ambos impedem que recursos provenientes de privatização sejam usados para financiar dívida corrente, como os programas sociais.
Um dos motivos para Guedes se dizer assustado com o valor dos precatórios (de R$ 10,3 bilhões em 2010 para R$ 54 bilhões em 2021 e quase o dobro no ano que vem) foi o caminho de revisões de valores e postergação que os governos anteriores adotaram. Como se trata de uma dívida de Estado, não de governo, os mandatários deixam a conta para seus sucessores. Entre os principais credores estão os estados: Amazonas, Bahia, Ceará, Maranhão, Paraná e São Paulo, que cobram na Justiça repasses do Fundef. Há ainda grandes somas devidas ao Banco do Brasil e à Caixa Econômica Federal.
“O plano é ter margem para financiar o Bolsa Família. Portanto é uma medida eleitoreira” Maílson da Nóbrega ex-ministro da fazenda.
GINÁSTICA FISCAL Sobre usar a PEC para desviar do teto de gastos, Guedes disse que os precatórios “já são gastos extraordinários, portanto não entram exatamente como as premissas do teto”. Esse argumento não cola para especialistas. É o caso do professor de Direito Fernando Facury Scaff, sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados. Ele afirmou ter dúvidas quanto à necessidade — e viuabilidade — de uma nova emenda constiticuinal para o tema.
Segundo Scaff, já existem normas com essa finalidade na Constituição. Ele cita como opção usar o parágrafo 20 do artigo 100, inserido pela Emenda Constitucional 94/2016. “Reza essa norma que caso haja precatório com valor superior a 15% do montante dos precatórios apresentados regularmente, poderá ocorrer parcelamento”, explicou. Esse parcelamento se divide no pagamento de 15% até o final do exercício seguinte e o restante, em parcelas iguais nos cinco anos subseqüentes. O mesmo texto prevê a realização de acordos diretos, perante juízos auxiliares de conciliação de precatórios, com redução máxima de 40% do valor do crédito atualizado. “Existe ainda o parágrafo 19 do artigo 100, que prevê a possibilidade de financiamento de parte desse montante, em situações específicas.” Ele ressalta que medidas como as citadas foram adotadas em 2016 e poderiam ser ativadas de novamente. “O problema é o interesse em usar a folga orçamentária para gastos eleitorais”, afirnou Scaff.
Doutor em contas públicas e consultor de direito público do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, Mariano Vieira Souto afirma que essa “ginástica fiscal” é passível de muitos questionamentos, inclusive no Supremo Tribunal Federal. Segundo ele, caso haja indícios de que a manobra foi criada apenas para liberar recursos no Orçamento, o governo pode ser acusado de uso indevido da máquina pública para fins eleitorais.
Vale lembrar que a questão dos precatórios surgiu no radar do governo duas semanas após Guedes anunciar uma renúncia de R$ 30 bilhões ao ano com Imposto de Renda, além de prever um gasto extra de até R$ 25 bilhões com o novo Bolsa Família e recursos para obras. “Para quem quer fazer todos esses gastos tendo só 6% do Orçamento liberado, o precatório não foi um meteoro, mas uma estrela cadente”, disse Vieira Souto.
ENFIM, O CARTÃO VERMELHO
Parece um déjà vu, mas não é. Waldery Rodrigues está deixando o cargo de assessor especial de relações institucionais do Ministério da Economia. Para quem está confuso, ele havia sido demitido do cargo de Secretário da Fazenda há cerca de três meses. Na ocasião, a uma uma fala do então secretário de Guedes irritou Jair Bolsonaro. O presidente Bolsonaro afirmou que estaria pronto para dar um “cartão vermelho” para Waldery, um dos homens mais próximos de Guedes. Para evitar a expulsãio, o ministro negociou com Bolsonaro a troca de cargo de seu aliado, que ficou no governo. O argumento era que a equipe econômica sofrera seis baixas em quatro meses — e estava se tornando “inviável” a execução dos programas. Fora do jogo, Waldery Rodrigues deixou também na quarta-feira (4) a cadeira de representante do governo no Conselho de Administração do Banco do Brasil.
Fonte: Isto É: Dinheiro