08 de agosto de 2022
Por Fernando Facury Scaff
O Supremo Tribunal Federal encerrou o julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 4.785, 4.786 e 4.787 declarando por maioria que as leis dos estados de Minas Gerais, Pará e Amapá são constitucionais, e, portanto, são válidas as taxas de fiscalização e controle sobre a extração de minérios em seus territórios. Como a função da doutrina é doutrinar, analisando de forma crítica as decisões dos Tribunais, tecerei alguns comentários sobre esse julgamento, tomando como parâmetro básico o que foi noticiado no site do STF, pois o acórdão ainda não foi lavrado.
Sobre a questão da proporcionalidade consta que “o colegiado considerou possível, nos três casos, que a taxa seja baseada na presunção do custo da fiscalização, porque o ônus tributário ao patrimônio do contribuinte está graduado de acordo com o faturamento do estabelecimento, com o grau de poluição potencial ou com a utilização de recursos naturais”.
Há uma incorreção nessa afirmativa, pois, a considerar válido o texto acima, estão sendo colocados no mesmo balaio dois diferentes institutos, o da proporcionalidade e o do confisco. É inegável que as taxas não são confiscatórias, pois representam um valor muito baixo em comparação com o patrimônio da (maior parte) das empresas, porém isso nada tem a ver com a questão da proporcionalidade, uma vez que esta não tem correlação com o referido patrimônio. Proporcionalidade, na questão das taxas, está correlacionada à questão da equivalência, isto é, a arrecadação tem que ser suficiente para cobrir os custos fiscalizatórios, o que faz com que a correlação seja interna corporis ao Poder Público que a arrecada.
No caso, está mais do que provado que essas taxas são arrecadatórias, pois geram para os cofres públicos um montante vastamente superior ao custo da fiscalização – na verdade, ao custo de várias das Secretarias estaduais envolvidas, segundo os orçamentos de cada uma delas. Logo, o argumento utilizado no julgamento não condiz com a proporcionalidade, pois foi usado um parâmetro externo àquele que deveria ser utilizado.
Quanto à questão ambiental, consta que foram proferidos votos argumentando que “a taxa tem natureza extrafiscal, porque desincentiva atividades degradantes e permite ao estado que se planeje para evitar desastres ambientais”, usando como referência aos desastres ambientais de Mariana e Brumadinho em Minas Gerais, o que gera “urgência das ações de prevenção”.
Penso existir outra incorreção, pois uma coisa é a fiscalização ambiental sobre um “bem de uso comum do povo” (artigo 225 da Constituição) e outra é a fiscalização minerária sobre bens da União (artigo 20, IX, da Constituição), a qual é da própria União, através da Agência Nacional de Mineração (ANM), cuja lei estabelece, de forma expressa, que a ela incumbe “a regulação e a fiscalização das atividades para o aproveitamento dos recursos minerais no país” (artigo 2º da Lei 13.575/17). Logo, a decisão misturou a frequência, atribuindo à matéria minerária regulamentação ambiental. Ademais, várias empresas estavam pagando a taxa mineral em Minas Gerais, mesmo durante a tramitação da ADI, e isso não impediu os lastimáveis desastres ambientais.
Sobre o impacto social e ambiental, foi dito que “pode-se concluir que, quanto mais minério extraído, maior pode ser o impacto social e ambiental do empreendimento. Maior, portanto, deve ser o grau de fiscalização e controle do poder público”.
Aqui a imprecisão no julgamento é ainda maior, pois são apontados argumentos que não dizem respeito ao ponto central em debate, qual seja, o artigo 145, parágrafo 2º, da Constituição: “As taxas não poderão ter base de cálculo própria de impostos.“ E a quantidade de minério extraído serve como base de cálculo do ICMS, o que aponta para a violação da Constituição, sem que o STF tenha enfrentado o tema de forma direta.
Sobre o exercício do poder de polícia, foi alegado que “as taxas possibilitam que os estados exerçam o poder de polícia sobre atividades em que há competência constitucional comum com a União”, e que “em razão da maior complexidade da fiscalização das mineradoras, o valor das taxas não viola o princípio da proporcionalidade, especialmente levando-se em conta os expressivos lucros dessas empresas”, afastando a alegação de confisco.
Aqui a mistura de argumentos é total, o que obriga a desdobrá-los para melhor análise.
O efetivo exercício do poder de polícia dá ensejo à cobrança de taxas – isso é inegável. Todavia, esse fato não tem correlação direta com “competência constitucional comum com a União” (artigo 23, XI, da Constituição), pois são coisas distintas. Nem toda fiscalização acarreta poder de polícia. Um exemplo esclarece: a Receita Federal fiscaliza os contribuintes de tributos federais, mas não exerce poder de polícia. Imagine só, caro leitor ou leitora, você passar a pagar uma taxa de fiscalização para ser fiscalizado pela Receita Federal…
Logo, uma coisa é a “competência concorrente”, outra coisa é o “efetivo exercício do poder de polícia”. Poder de Polícia, na feliz expressão de Regis de Oliveira, é “o poder de dizer não”, ou seja, de autorizar ou vedar determinada atividade. Qual poder de polícia os estados possuem sobre a atividade mineral? Nenhum. Só quem o tem é a União, através da ANM. Os Estados possuem poder de polícia sobre a atividade ambiental e não sobre a mineral – mais uma confusão.
Ainda sobre o mesmo tópico, alega-se que a fiscalização sobre as atividades mineradoras é “mais complexa”. Qual a complexidade em identificar as toneladas de minério extraído? Nenhuma. Servem como base de cálculo para um imposto, o ICMS, além de servirem para a cobrança da CFEM. Além disso, não é verídico que, quanto mais toneladas forem extraídas, maior deverá ser a fiscalização – a mesma quantidade de pessoas fiscaliza uma balança em que constam dez ou 100 toneladas. Logo, o argumento também não se sustenta.
O último argumento neste tópico é sobre proporcionalidade e confisco, que já foi comentado acima, com a piora de que está sendo usado o lucro como parâmetro – isso implica em dizer que, havendo prejuízo, haverá proporcionalidade? A lógica jurídica não é consistente.
Os argumentos dos ministros cujos votos restaram vencidos são muito mais convincentes, pois, segundo a mesma fonte, Luís Roberto Barroso, Gilmar Mendes e André Mendonça, reconheceram a competência dos estados para a instituição dessas taxas, porém as entenderam desproporcionais, o que geraria sua inconstitucionalidade. O ministro André Mendonça ainda acresceu, corretamente, haver bitributação, pois já há a cobrança de taxas de fiscalização ambiental sobre a atividade mineradora. O ministro Marco Aurélio já havia votado pela inconstitucionalidade da cobrança da taxa na ADI 4.785.
Volto a relatar um fato: “Em um evento sobre tributação do setor mineral realizado anos atrás, ao passar por um estande montado pela secretaria estadual que cuidava da fiscalização do setor de mineração, fizeram questão de me apresentar a última novidade que estava sendo implementada — haviam comprado vários drones para efetuar a fiscalização da quantidade de minérios extraídos, reduzindo, assim, o número de servidores alocados para revisar a documentação das empresas. Perguntei: com isso, a atividade fiscalizatória ficará mais barata? Resposta: sim, claro. Nova pergunta: portanto, o valor da taxa minerária cobrada das empresas será reduzido? Ouvi gargalhadas como resposta” (leia aqui).
É concreta a possibilidade de haver a proliferação na instituição de taxas minerárias por todos os estados, e, pior ainda, por todos os mais de 5.500 municípios. Os bens minerais estão no meio de nós, seja no computador ou celular no qual você está lendo este texto, seja no tijolo, cimento, areia e vidro que fazem as paredes e janelas no ambiente em que você se encontra. O impacto econômico dessa decisão, e sua possível ampliação federativa, seguramente será repassado ao consumidor.
Enfim, há cerca de um ano e meio analisei a jurisprudência do STF sobre a matéria, comparando o que havia sido votado acerca das taxas hídricas e das taxas sobre petróleo e gás, com o que então estava por ser votado acerca das taxas minerárias. De forma comparativa, constata-se que a nossa mais alta Corte não cumpriu o artigo 926 do CPC: “Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”. Em matéria de taxas de fiscalização, a jurisprudência do STF não é nem estável, nem íntegra e muito menos coerente.
É inegável que as decisões dos tribunais devem ser obedecidas, porém não são imunes a críticas doutrinárias, como as ora apontadas.
Fonte: Consultor Jurídico