8 de junho de 2021
Por Fernando Facury Scaff
Não restam dúvidas que precisamos de uma reforma tributária com “R” maiúsculo, cujo principal escopo seja alavancar nosso desenvolvimento socioeconômico. O sistema atual, criado na década de 1960 do século passado rendeu bons frutos, tanto que nos permitiu ser a oitava maior economia do mundo até uns sete anos atrás, porém o modelo precisa de reformas, seja em razão de a economia ter se modificado substancialmente, seja pelos vários remendos que foram sendo feitos ao longo do tempo, sempre baseados na necessidade de tapar buracos na arrecadação.
A lógica de mudança de modelo deve ter por base alavancar nossa economia e não simplesmente arrecadar. Deve-se ter em mente os novos horizontes da economia digital e os objetivos ESG (Enviromental, Social and Governance), sigla que aponta para os novos desafios para o desenvolvimento socioeconômico, o que está alinhado com as diretrizes estabelecidas em nossa Constituição, como objetivos fundamentais (artigo 3º), amparados nos pilares determinados pelo artigo 1º. Assim, as bases tributárias renda, patrimônio e consumo devem estar delineadas para, com base nos pilares, atingirmos tais objetivos constitucionais.
Ocorre que todas as propostas que foram apresentadas nas últimas décadas buscavam equacionar estas bases tributárias com os olhos voltados para aumentar a arrecadação — e isso, a despeito de necessário, é insuficiente.
O fato é que o Brasil é uma federação, e não está sendo fundado nos dias atuais — existimos como país há mais de cinco séculos, e somos formalmente independentes há quase dois séculos. Nesse sentido, observando os problemas atuais, constata-se que não é suficiente reformar o sistema tributário, é necessário observar também um problema silencioso, mas extremamente importante, que diz respeito à dívida pública de Estados e Municípios com a União.
Se não for equacionada esta dívida pública, a questão tributária permanecerá com foco no aumento da arrecadação, sem que observe o necessário desenvolvimento socioeconômico.
Posicionado o problema, apresento, como uma ousadia para debate, alguns aspectos que me parecem necessários para uma reforma do federalismo financeiro no Brasil, incluindo três dimensões: dívida, receita e despesa. São ideias colocadas para debate, sem o refinamento que se faz necessário, limitado pelo espaço deste texto.
Sobre a dívida. Uma ideia é que a União assuma toda a dívida de Estados e Municípios, zerando o jogo interfederativo. Toda a dívida se tornaria federalizada.
Claro que isso trará uma inexorável iniquidade, pois alguns Estados são pouco endividados, normalmente os mais novos, como Amapá e Rondônia, e outros são muito endividados, como Rio de Janeiro e São Paulo. Assim, a dívida se tornaria de todos os brasileiros, e caberia à União equacioná-la, sem os critérios civilistas que a regem atualmente, pois inadequados para as questões entre entes públicos. A dívida seria dos brasileiros, e não dos cariocas, paulistas ou gaúchos. Seria o ônus a ser pago pela reorganização política-financeira brasileira.
Algo semelhante foi feito no final dos anos 90, mas se manteve a lógica de créditos e débitos entre a União e os Estados, o que descambou para intensa judicialização da matéria. A proposta é mais ousada – simplesmente transferir a dívida financeira de Estados e Municípios para a União. Todos os brasileiros pagarão.
Para quitar essa dívida, a União poderia criar um tributo temporário, de forma clara e transparente, de forma a que todos os brasileiros soubessem que aquele pagamento serviria para pagar essa grande reconciliação financeira federativa. Para que não haja dúvida: tal fonte de arrecadação deverá ser temporária e transparente, com prestação de contas detalhada e apartada, devendo ser previamente auditada e conciliada.
Com isso deve-se abandonar metas de superavit primário, retornando ao que antes existia, de meta de superavit nominal — o que é muito mais transparente e permite melhor controle. Hoje é dificílimo saber qual o verdadeiro tamanho de nosso déficit — sabe-se que ele existe, mas qual seu tamanho com precisão e de forma fácil de ser identificada nos orçamentos? O artigo 9º da Lei de Responsabilidade Fiscal admite essa possibilidade.
Deve-se implantar o Conselho de Gestão Fiscal, de que trata o artigo 67 da Lei de Responsabilidade Fiscal, para que seja feito o acompanhamento e a avaliação, de forma permanente, da política e da operacionalidade da gestão fiscal, com ampla representação federativa. Novas dívidas de Estados e Municípios só com a escuta desse Conselho e o aval do Senado. Isso deslocaria a STN (Secretaria do Tesouro Nacional) para desempenhar seu verdadeiro papel, que não é nacional, mas federal, isto é, apenas para o âmbito da União. Se transformaria em uma Secretaria do Tesouro Federal.
Sobre a receita. Ultrapassada a questão da dívida, pode-se analisar com atenção a reforma tributária, isto é, da arrecadação.
Em linhas gerais, penso que a base tributária renda deve permanecer na União, com arrecadação compartilhada com Estados e Municípios, de modo semelhante ao que hoje ocorre.
A base tributária consumo deve ser dual, ou seja, pode haver imposição tributária pela União e pelos Estados, com partilha do que tiver sido arrecadado com os Municípios. Aqui se deve incluir os bens imateriais consumidos (economia digital). Deve-se extinguir o Confaz e atribuir as funções de harmonização tributária ao Senado Federal, que criaria uma Comissão Permanente para seu acompanhamento e resolução de conflitos.
A base tributária patrimônio deve ser municipal para os imóveis (atuais IPTU e ITR) e estadual para os demais bens (atual IPVA). Aqui deve-se incluir as transferências de patrimônio, nos mesmos moldes.
A tributação do comercio exterior deve permanecer na União (atuais Impostos de Importação e de Exportação), bem como a tributação sobre operações financeiras (atual IOF).
Deve-se extinguir e proibir a instituição de contribuições de qualquer espécie, exceto as previdenciárias. Trata-se de uma experiência nefasta nestes trinta e poucos anos do atual sistema tributário. Nem mesmo a vetusta contribuição de melhoria deve remanescer, pois restrita aos livros acadêmicos, sem nenhuma aplicação em mais de sessenta anos de existência. Os tributos serão apenas os impostos e as taxas – e estas, apenas as de polícia. Nada além.
Este sistema tributário deve estar pautado com os objetivos nacionais, isso é, desenvolvimento socioeconômico, e não somente com intuito arrecadatório, o que implica no uso intenso da extrafiscalidade.
As renúncias fiscais (incentivos fiscais) já concedidas devem ser respeitadas até seu prazo final, sob controle das condições estabelecidas. As que tiverem sido concedidas sem prazo ou sem condições devem ser repactuadas, ouvidos os setores envolvidos, sem soluções impostas goela abaixo dos contribuintes. Novas renúncias fiscais só com a escuta do Conselho de Gestão Fiscal e o aval do Senado.
Sobre as despesas. Afastado o saldo da dívida federativa, que será concentrada na União e financiada através de um único tributo temporário, conforme acima exposto, cada ente federado deverá manter suas atuais atribuições nas despesas, que deverão ser melhor delineadas através de lei complementar, na forma do art. 23, parágrafo único da Constituição — o que já tarda. Só assim se poderá identificar qual ente federado é o principal responsável pela condução de cada política pública dirigida à população.
Nesse sentido, Estados e Municípios, com fôlego financeiro em face da federalização de suas dívidas para com a União, terão espaço para adotar as políticas públicas que lhe competem no âmbito da segurança, saúde, saneamento, educação etc., sem que dependam da União para dar cada passo. E também organizar planos de pagamento de seus precatórios e restos a pagar com pessoas físicas e jurídicas, encerrando esse capítulo igualmente nefasto em nosso sistema.
O desenho parece bastante com o que atualmente existe? Sim, em linhas gerais. O perigo mora nos detalhes de sua implementação, o que escapa a este espaço detalhá-los. Repito: esse modelo nos permitiu ser a 8ª economia mundial até uns poucos anos atrás, necessitando de ajustes, em especial no âmbito da dívida, mal necessário e silencioso, que nos está sufocando e emperrando a solução dos problemas no âmbito da receita e da despesa.
Esta proposta olha para a totalidade do problema envolvendo dívida, receita e despesa públicas, visando implantar um novo federalismo em nosso país, e permitir que se discuta uma reforma tributária de verdade, com “R” maiúsculo, e não a que foi debatida ao longo das décadas pós-88, além de arranjos quotidianos. A dívida impede que se analise o problema da receita de forma clara, e distribua as despesas para cada ente federado de forma plenamente identificada.
Não tenho a menor ilusão acerca do timing de aprovação de algo parecido, mas a melhor conduta seria iniciar já, no âmbito do Congresso, criando uma Comissão de Especialistas para a Reforma Financeira Federativa, da qual sairiam interligadas propostas para futura deliberação parlamentar nestes três âmbitos. Há muita gente qualificada pensando nisso, porém de forma fracionada, dentro e fora da máquina estatal. É necessário equacionar todos esses aspectos de forma global e federativa, e com a flexibilidade necessária para que, por lei, sejam realizadas as alterações, com o mínimo possível de modificações constitucionais, para não engessar a política — afinal, quanto mais detalhada a Constituição, menor o espaço da política.
Proponho estas mal traçadas linhas como uma ousadia para debate.
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Fonte: Conjur