Este é o segundo episódio da minissérie que escrevo sobre o tema, e nele trato do regime de programação orçamentária dos precatórios. No anterior, tratei do regime de programação orçamentária dos contratos, com foco no empenho.
Espero que apreciem, pois outros episódios serão veiculados quinzenalmente nesta Conjur, na coluna Contas à Vista (que não se confunde com a coluna Justiça Tributária).
O sistema de precatórios é previsto no artigo 100 da Constituição e serve para dar previsibilidade à despesa pública decorrente de decisões judiciais transitadas em julgado, que determinam obrigações de pagar pelo poder público, programadas por meio do orçamento.
Supondo que tenha transitado em julgado uma decisão favorável a servidores públicos que pleiteavam o reconhecimento de gratificações que não lhes foram pagas a seu tempo e modo, o montante a ser pago pelo poder público não estava previsto no orçamento daquele ano, sendo necessário programar orçamentariamente essa despesa para que ocorra seu efetivo pagamento.
Diferentemente do contrato de obras públicas, não há prévio empenho reservando valor no orçamento para realizar os pagamentos, e nem é prevista a fase de liquidação, também não existindo a figura de restos a pagar.
A dinâmica da programação orçamentária para pagamento de decisões judiciais transitadas em julgado é completamente diversa, exigindo que seja formalizado um procedimento para expedição de precatórios, a fim de que possa ocorrer o pagamento. O foco será, sempre, a inclusão de verbas no orçamento para fazer frente ao pagamento determinado pela Justiça e a busca pela segurança jurídica no âmbito financeiro para as partes envolvidas.
As decisões judiciais que condenam o poder público a pagar são objeto de precatórios, cuja dinâmica para o processamento de pagamento segue um rito específico, uma vez que não existem recursos orçamentários previstos naquele ano para quitação desse débito.
A programação orçamentária para pagamento da despesa pública decorrente de precatórios decorre de um complexo rito judicial e legislativo, abaixo sintetizado:
Esse é o sistema judicial e legislativo que instaura a programação orçamentária para o pagamento dos precatórios, visando a dar segurança jurídica às partes envolvidas e previsibilidade à despesa pública, evitando gastos-surpresa, decorrentes da inexistência de recursos orçamentários para pagamento. Exatamente por isso, é necessário todo esse processamento para prover recursos na lei orçamentária anual, motivo pelo qual todo esse rito procedimental judicial e legislativo deve ser necessariamente cumprido.
Registra-se que a expedição de precatórios dispensa a emissão de empenho, sendo suficiente a movimentação financeira (ver Regis Fernandes de Oliveira: Curso de Direito Financeiro, 6ª ed. São Paulo: Ed. RT, 2014, p. 653), o que reforça a lógica exposta, de existir uma programação financeira completamente diferente para o sistema de precatórios, em comparação com o sistema contratual, amparado por empenho de despesa. Não há impedimento à elaboração de empenho para a realização do pagamento dos precatórios, sendo apenas desnecessário.
Sendo assim, não há imprevisibilidade financeira e muito menos insegurança jurídica que justifique a submissão do pagamento dos valores contratados e garantidos por empenho, ao regime de precatórios, em caso de uma eventual decisão favorável ao contratado.
O que foi mencionado para as decisões judiciais, é plenamente adequado para as decisões arbitrais, reguladas, no âmbito federal, pelo Decreto 10.025/19, artigo 15. Esta norma surgiu para suprir uma lacuna jurídica sobre os efeitos das decisões decorrentes de procedimentos arbitrais, que geram obrigações de pagar pelo poder público federal, estabelecendo idêntico tratamento aplicado às decisões judiciais.
Havia dúvida sobre a força executiva das decisões arbitrais que determinassem obrigações de pagar contra o poder público, e o decreto solucionou essa lacuna, equiparando os efeitos das decisões arbitrais àquelas proferidas pelo Poder Judiciário, respeitadas as nuances próprias ao sistema arbitral.
Ocorre que tal decreto, além de ser aplicado federativamente apenas à União, não inovou no sistema jurídico quanto à execução de contratos que possuem garantia de empenho, seja por meio de decisões judiciais ou arbitrais. Esta norma não afasta a interpretação jurídica exposta, assim resumida: havendo empenho, não há necessidade de precatório, pois o valor está orçamentariamente garantido, não existindo insegurança jurídica ou imprevisibilidade financeira que justifique ser adotada a programação orçamentária do regime precatorial.
Desta forma, a decisão transitada em julgado que determina obrigação de pagar, seja oriunda do Poder Judiciário ou de tribunal arbitral, só será regida pelo sistema precatorial se não houver recursos empenhados no orçamento para a satisfação do credor.
Em síntese: tanto nas decisões judiciais, quanto nas arbitrais, havendo empenho, não é necessária a expedição de precatório. O fundamento jurídico-financeiro é o mesmo: havendo recursos empenhados, o valor está garantido, com previsibilidade e segurança jurídica para as partes envolvidas.
Por conseguinte, caso não exista empenho, ou ele tenha sido justificadamente cancelado, obedecido o devido processo legal e a ampla defesa, deverá ser adotado o regime precatorial. Isso ocorre em face da inexistência de recursos garantidos no orçamento e que devem vir a ser providos por meio de precatórios. Para receber o pagamento em caso de inexistência de empenho, deve-se adotar a programação orçamentária por meio de precatórios.
A regra do artigo 100 da Constituição não se constitui em um regime absoluto, inafastável. Existem diversas situações que dispensam o uso de precatórios, mesmo decorrendo de decisões judiciais transitadas em julgado que prevejam obrigações de pagar contra a Fazenda Pública.
Um exemplo que refoge ao sistema de precatórios pode ser identificado no regime de RPV (requisições de pequeno valor), que decorre de decisões judiciais transitadas em julgado que tenham valor considerado pequeno conforme lei de cada unidade federada e que são pagos diretamente, sem o rito precatorial.
É efetuada a previsão orçamentária anual global para pagamento desses valores, inserida na LOA correspondente e paga regularmente. Nesta hipótese, não é obrigatória a existência de empenho e liquidação no sentido formal dos termos, pois o valor orçado será pago em poucos dias a depender da norma de cada unidade federada.
No início de cada ano, o credor do RPV pode até mesmo ser indeterminado, e o trânsito em julgado ocorrer ao longo do exercício financeiro, sendo o pagamento realizado logo após, independente de precatórios, até o limite previsto por aquela unidade federada. Esgotado o que foi estimado para pagamento do conjunto de RPVs, há abertura de crédito adicional, da espécie suplementar, para reforço daquela rubrica orçamentária.
Outro exemplo diz respeito à matéria tributária. O artigo 170 do CTN (Código Tributário Nacional) prevê a possibilidade de compensação de créditos tributários com créditos líquidos e certos, vencidos ou vincendos, do sujeito passivo contra a Fazenda Pública, desde que haja previsão legal. E, mesmo havendo trânsito em julgado, o credor/contribuinte poderá se valer de compensação tributária e não se atrelar ao sistema de precatórios.
A Instrução Normativa 2.055/21, da Secretaria da Receita Federal, regulamenta o processo de compensação de créditos tributários, inclusive dos que vierem a decorrer de decisões judiciais transitadas em julgado.
Outra situação ocorre no caso da complementação do valor desapropriado, tendo sido afastado o uso dos precatórios, fruto de recente decisão do STF no RE 922.144, datada de 19 de outubro de 2023.
O município de Juiz de Fora ajuizou uma ação de desapropriação por utilidade pública de um imóvel para construir um hospital, depositando a quantia de R$ 834 mil e se imitido na posse do bem.
A decisão de 1ª instância fixou o valor do imóvel em R$ 1,7 milhão, com correção monetária, juros de mora e compensatórios, tendo determinado que a diferença fosse complementada por depósito judicial.
Por meio de embargos de declaração, a decisão foi alterada e submetido o pagamento da diferença ao regime precatorial. O TJ-MG manteve a sentença. A base jurídica do recurso extraordinário foi a de que o regime de precatórios não se aplicaria à verba indenizatória em caso de desapropriação porque o processo deve ser precedido de indenização prévia, justa e em dinheiro.
O STF fixou a seguinte tese no Tema 865 em Repercussão Geral: “No caso de necessidade de complementação da indenização, ao final do processo expropriatório, deverá o pagamento ser feito mediante depósito judicial direto se o Poder Público não estiver em dia com os precatórios”, texto sujeito a críticas.
Com essa decisão, o STF determinou que a diferença da indenização seja paga mediante depósito direto pelo município de Juiz de Fora em face da determinação constitucional de que a indenização em casos de desapropriação deve ser justa e prévia, o que é um entendimento que afasta até mesmo a previsão orçamentária para o efetivo pagamento, que deveria ter sido justo, além de prévio — isto é, sem precatórios.
Esses casos comprovam que o regime precatorial não é uma regra absoluta, devendo ser analisada caso a caso para se constatar se há ou não programação orçamentária para ser realizado aquele pagamento. O fundamento sempre será a existência de recursos orçamentários programados, o que pode ocorrer pela via contratual (empenho) ou pela via judicial (precatórios). Qualquer das vias garante segurança jurídica para as partes envolvidas e previsibilidade orçamentária.
Nos próximos episódios: Será apresentada a comparação entre as duas espécies de programação orçamentária (dos empenhos e dos precatórios) e uma interpretação do caput do artigo 100, CF. Aguardem e acompanhem neste mesmo canal da Conjur.
Fonte: Consultor Jurídico